Ontem eu não escrevi.
Levantei cedo, tomei café sem pensar em frases, deixei o caderno fechado na escrivaninha. A culpa tentou me cutucar logo depois do primeiro gole, mas eu olhei para o mundo – pelo vidro da janela fechada – antes dela se firmar. Tinha um senhor de boina atravessando a rua com uma sacola vazia e o corpo dele se inclinava como quem luta contra o vento. Foi então que entendi que tem dias que não se escreve, que apenas se observa o mundo pelo vidro.
Horas mais tarde saí sem destino, afrouxando os ombros da rotina. Levei nada: nem livro, nem bloco, nem celular, nem direito de registrar. Fui andar. E andei.
Atravessei três quarteirões e parei num canteiro qualquer onde um ipê ainda teimava em flor, apesar do inverno. Sentei num banco de cimento e fiquei olhando um casal que discutia baixinho perto de mim. Por um segundo pensei que talvez ali morasse um conto. Mas lembrei. Deixei a cena passar como uma chuva. Umedeci a escuta do mundo. E deixei uma intenção suspensa em um dos ganchos do guarda-chapéu invisível que fica dentro da bolsa que levei comigo.
Com o tempo – esse bicho teimoso que aprendi a desdomesticar – notei algo que só o descanso me permite enxergar: a escrita não nasce do esforço, nasce do espaço que damos para ela respirar.
Na volta pra casa, passei por um muro pichado com palavras quase apagadas. Parei pra ler o que restava. “Aqui é…” O resto da frase havia sido engolido pelo que o tempo cobra das paredes expostas à sua vontade. Aquelas duas palavras me bastaram.
“Aqui é…”
Uma frase inacabada. Um começo que repousa.
Cheguei em casa, olhei para o caderno ainda fechado e não o abri. Fiz um chá, deitei um pouco no sofá e deixei os pensamentos correrem como gatos vadios que não toleram domesticação. Já aprendi a conviver com eles. Quis apenas saber que estavam vivos e bem alimentados.
Escrever também é isso: manter os pensamentos vivos mesmo quando não se captura nenhum. Alimentá-los com o mundo, não com o desespero de produzir. Permitir que a página respire, que o corpo descanse, que a ideia cochile. Que o tempo seja cúmplice e não chefe. Porque a escrita que me interessa não é a que sangra da exaustão. É a que brota do silêncio. É a que me escolhe quando não estou esperando.
Hoje eu não escrevi.
Mas a página respirou.
E isso, eu sei, já é um começo.
Aqui é a escrita que me interessa.
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