Um lugar para escutar o
que ainda não virou palavra

Às vezes, eu preciso tirar férias de mim. Não do meu corpo, nem da minha vida, mas da ideia de quem eu sou enquanto autora.

Quando escrevo, carrego um nome, um histórico, uma postura, um acúmulo de textos e títulos. Carrego também perguntas, expectativas, vozes alheias que ecoam como editores internos: isso tem força? Isso comunica? Isso sustenta sua carreira? E, se não me cuido, passo a viver como se fosse apenas isso: a autora.

Foi por isso que decidi, há um tempo, tirar férias de mim. Deixei de lado o “sou escritora” e fui fazer coisas sem objetivo literário. Fui caminhar sem bloco. Fui visitar museus sem anotar nada. Fui passar dias inteiros sem pensar no próximo projeto. Desarmei a postura. Desobriguei o gesto.Me deixei ficar sem enredo.

Nos primeiros dias, parecia estranho. Quase um erro. Senti como se estivesse traindo minha função. Com o tempo, fui voltando para um lugar que não era menor. Era livre.

E foi aí que percebi: mesmo sem querer, mesmo “de férias”, eu estava escrevendo. Escrevia sem papel. Escrevia ao olhar o mundo sem filtro literário. Escrevia ao ouvir conversas no ônibus. Escrevia ao sentir raiva, ao fazer compras, ao não saber onde guardei a chave. Escrevia na pausa.

Há uma escrita que não passa pela escrita. Ela se deposita em silêncio, como poeira sobre os móveis. E um dia, quando sentamos para escrever de novo, ela está lá. Presente, mesmo quando ausente.

Outro dia, encontrei um bilhete antigo meu dentro de um livro esquecido. Era um lembrete banal, quase tolo. Mas a caligrafia dizia tudo. Ali estava eu, escrevendo como quem respira. Sem pretensão, sem público, sem cuidado estético. Só presença.

Foi então que percebi que essa também sou eu.

Essa talvez seja mais eu do que todas as versões que performo como “autora”.

Tirar férias de mim me devolveu a alegria de escrever sem função. Me lembrou que a palavra não precisa ser útil para existir. E que, muitas vezes, ela nasce mais viva quando não está a serviço de nada.

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